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E eles viveram felizes...

Foto do escritor: Tatiana MaretoTatiana Mareto
A internet deu voz a uma legião de imbecis. - Umberto Eco

Eu entendo o Eco, entendo mesmo. As redes sociais, principalmente, potencializaram a voz de quem, antes, só tinha espaço para discursar nos churrascos de família e nas mesas de bares (ou seja, quase ninguém prestava atenção porque já estava todo mundo bêbado). Muita gente adquiriu relevância apenas por estar ali, diante de um algoritmo confuso e por vezes inexplicável, que coloca todo mundo frente a frente sem olhar nos olhos. 


Mas não sou pessimista como ele. Apesar disso, a internet também deu voz a pessoas boas, a gente inteligente pra caramba e trouxe informação de qualidade para quem não teria outra forma de adquiri-la


Eu fui uma criança que pesquisou em bibliotecas. Tínhamos enciclopédias em casa e pesquisávamos em índices enormes que ficavam no final de cada volume. Sou da época dos dicionários e livros enormes, compartilhados e engordurados. Nessa época, a informação chegava a quem podia pagar. Cidades pequenas não tinham bibliotecas boas, completas, e pessoas mais pobres não tinham como adquirir enciclopédias, nem dicionários.


A internet pode ter dado voz aos tolos, mas também aproximou pessoas e possibilitou inclusão. 


Ainda assim, parece que o lado feio do algoritmo sempre nos conecta com algumas pessoas excessivamente assertivas e um pouco arrogantes que, do alto de suas certezas, afirmam verdades relativas como se fossem dogmas. Incontestáveis. Exceto que não são. E foi em uma dessas excursões pelas sombras do Threads que me deparei mais uma vez com a discussão sobre romances e seus finais felizes. Uma que já deveria ser uma não discussão, porque o debate é simplesmente infrutífero e não nos leva a nenhum lugar melhor. 


Que discussão é essa? 


Romances devem ter finais felizes. Ponto final. Assim, sem vírgulas, sem dois pontos, sem preposições. Livros de romance possuem, devem possuir, têm em sua essência o final feliz. 

Mas tem quem discorde. — Romances nem sempre precisam de final feliz, afinal, Machado está aí para provar isso. 

E tem quem discorde da discordância: — Machado não escrevia romances! 

No fim, estamos discutindo o sexo dos anjos porque todas as partes envolvidas estão certas — e erradas na mesma proporção. 


O problema disso reside, além da arrogância da certeza, na falta de desambiguação de uma palavra polissêmica: o romance. Se eu for ao Google (oba, agora temos internet!), basta uma pesquisa de 10 segundos para perceber que romance possui diversos significados distintos:


São onze (!) significados que, se não esclarecidos, podem levar a conclusões incorretas. Machado escreve romances, se eu me ativer ao conceito da literatura. Ao mesmo tempo, não escreve romance, se eu entender que representa um caso de amor. 


Romance, para nós, é um substantivo literário de estilo enquanto também é um substantivo daquilo que decorre do amor (que é romântico). Romances livros não são livros de romance, porque os primeiros se referente à prosa de ficção, enquanto os segundos se referente à prosa de amor. 


Se nos aprofundarmos mais um pouquinho, encontramos o cerne do problema: aqui no Brasil, “traduzimos” os livros de romance de acordo com o seu significado estadunidense, porque é de lá que esse tipo de livro veio pra cá1. Então, os nossos livros de romance são o que eles chamam lá de romance novel. E o romance novel é amor (romance) e é livro (novel). 


Ah. Mas livro não é book? Como objeto, sim. Mas como produto literário, esse livro em específico é uma novel, ou seja, uma narrativa longa de ficção, geralmente escrita em prosa e publicada como livro, exatamente o que chamamos de romance no Brasil. 


Confuso?

Vamos até a Wikipedia. Ela define o romance como uma obra extensa de ficção narrativa geralmente escrita em prosa e publicada como livro. Usa como referência um livro de Margaret Anne Doody, que se chama The True Story of the Novel. Essa obra fala do gênero (ou estilo) literário que representa, nos países falantes da língua inglesa, a palavra novel.

Podemos entender então que… novel é romance. Romance é romance. Romance novel é um romance romântico2

Pronto. Com um pouco de paciência e menos soberba, conseguimos entender que o romance como gênero / estilo é uma coisa, o romance como sinônimo de histórias de amor é outra. 


Quando alguém diz que romances devem ter finais felizes, certamente está falando de livros românticos, não de Machado de Assis. Ninguém lê uma epopeia esperando um “e eles foram felizes para sempre”. A percepção da leitora de romances, que é quem geralmente adota o discurso do final feliz, é de que estamos diante de um elemento central, vital, do gênero — o que é correto. 


Quem estabeleceu essa regra (?) foi o Romance Writers of America, que se auto define como

… uma organização sem fins lucrativos com a missão de promover os interesses profissionais e comerciais comuns aos escritores de romances, através de conexões e apoio, aumentando a consciência pública sobre o gênero romance3

Foi o RWA quem determinou que romances possuem duas características essenciais, sem as quais o livro é uma novel, mas não um romance4


  1. enredo focado no casal;

  2. final satisfatório para a leitora, que pode ser um “felizes para sempre” ou um “felizes por enquanto”. 


Então, quando uma leitora de romance diz que essas histórias devem ter finais felizes, ela está correta do ponto de vista técnico e literário. Romance novels devem ter finais felizes e romance novels são, para nós, livros de romances. Romances românticos, histórias de amor, que são sim, romances, mas não são, não, Machado.

Não é só o RWA quem determina que romances devem ter finais felizes! O site Masterclass, um dos principais destinos para quem quer estudar sobre literatura de ficção, diz a mesmíssima coisa. Para eles, as características principais de um romance são: 


  • Deve haver um conflito desafiando o relacionamento [romântico] que precisa ser superado. 

  • As histórias são aspiracionais, então as questões fora do relacionamento central são limitadas. 

  • Livros de romance são geralmente narrados pela perspectiva de uma mulher e possuem personagens femininas determinadas e inteligentes. 

  • Todos os livros de romance seguem os princípios de que o bom comportamento é recompensado com amor incondicional.

  • O mais importante de tudo, as histórias devem ter finais felizes. 


Ou seja: o final feliz é um consenso entre todo mundo que escreve romances (românticos), e fortemente esperado de livros de romances (românticos). Então, se alguém disser que romances devem ter finais felizes, alguém está muito provavelmente correto (e se baseando no que os experts em literatura dizem).


Claro que muitas vezes as leitoras querem finais felizes porque é o que se espera de um relacionamento amoroso: que o casal seja feliz. O que se espera do relacionamento é o que se espera do livro e por isso se torna uma regra. Afinal, livros de romances são, em sua imensa maioria, histórias escritas por mulheres e para mulheres, que retratam a ficção de vida que mulheres adorariam ter. Já é difícil o suficiente ser mulher na vida real, deixem que sejamos felizes na ficção, afinal!


Recomendações da semana:
  • Meu romance (bem romântico) que lançou no dia 23 de agosto é inspirado em comédias românticas da década de 90 e início dos anos 2000. Diversão garantida e com final bem feliz. Conheçam na Amazon Com Amor, seu Cavalheiro

  • Para escritoras de romance, recomendo o Romancing the Beat da Gwen Hayes (se já recomendei antes, recomendo de novo). Ele ajuda muito a estruturar livros românticos.


 
  1. Quem não se lembra dos famosos romances de banca, todos gringos, vendidos nas melhores bancas de revistas e jornais do Brasil? E quem não se lembra de 50 Tons de Cinza, o paradigma dos romances eróticos modernos, o transgressor que rompeu barreiras e colocou esses mesmos romances nas vitrines das livrarias? Pois é. A gente faz muito bem, aqui, mas fazemos o que aprendemos lá.

  2. Essa confusão de nomenclaturas no Brasil também afeta as categorias da Amazon, que possui a parte de literatura e ficção (que contempla livros de romance) e a parte de romance (que contempla livros de não romance).

  3. Mais informações sobre eles no site oficial: https://www.rwa.org/about-rwa

  4. Falo sobre isso também no meu blog, que vocês encontram aqui: https://tatianamaretoescritora.com.br/o-que-faz-um-livro-ser-considerado-um-romance/

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