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Eros, pornografia e violência

Foto do escritor: Tatiana MaretoTatiana Mareto

Talvez eu tenha me enganado. A newsletter anterior não foi a maior briga literária que eu compraria em qualquer rede. Essa é. Peguem um café porque lá vem história.


Foi em 2015 que entrei no doutorado. Costumo dizer que existe a Tatiana aD (antes do doutorado) e dD (depois do doutorado), porque aquele ambiente acadêmico cheio de mentes diferentes, estudos teóricos e filosóficos, realidades e opressões, me permitiu reflexões que nunca antes considerei. E foi lá que uma mulher maravilhosa, que me inspirou profundamente (ainda inspira) colocou a mão em meu ombro e disse: 

— Tenho algo para te contar. Você é uma feminista. 

O contexto? Eu dizia a ela que defendia as mulheres, mas não era feminista. Ela me deu corda, ouviu tudo que eu disse que não era e depois me ofereceu a oportunidade de entender que eu, na verdade, era. Feminista, sim, e muito feminista. Foi com o auxílio de outra mulher, que também me inspira até hoje, que conheci o movimento feminista na sua origem, as várias ondas (ou correntes, ou vertentes) do feminismo e entendi por que ele existe, para que ele existe e como a quarta onda naufragou para o capitalismo e o patriarcado.

A Tatiana feminista é quem escreve romances, por isso muito de mim está nas histórias que conto. É a Tatiana feminista, leitora de romances, inserida no contexto de mercado literário, que enxerga a arte como subversão e acredita que um livro é mais do que apenas um livro, que observa um fenômeno intrigante nos romances: a produção massiva de livros para mulheres que passam mensagens nem tão feministas assim. 


Apesar de defender os romances como literatura feminina e relevar a importância deles em um contexto socio-cultural, eles são permeados de elementos que são usados historicamente para oprimir mulheres. Quase todos esses elementos decorrentes do mito do amor romântico, essa ideia de relacionamentos amorosos entre pessoas, sempre repletos de características sociais (mas que consideramos como uma “coisa” individual e ignoramos, muitas vezes, seus aspectos culturais)1.

[…] o amor é parte da acção social e, nessa óptica, também da estrutura social, ajudando a criar novas relações sociais. Nessa definição encontra-se patente a influência mútua entre o sentimento do amor e as estruturas sociais onde se manifesta. (Ana Sofia Antunes das Neves)

A literatura e a poesia sempre foram um campo excelente para o amor, mesmo que não estejamos falando de romances. Desde Platão até os romances românticos femininos (a nossa literatura de mulherzinha da newsletter passada), vemos o amor citado e reproduzido como elemento fundamental e cenário para as mais diversas narrativas. Muitas bem trágicas, outras nem tanto, muitas controladas por homens, já que apenas eles podiam publicar livros, outras nas vozes femininas como Jane Austen.

[…] os meios de comunicação, como a literatura, a televisão, as novelas, os filmes e mais recentemente, a internet, são meios simbólicos que codificam o amor, isto é, que captam o sentimento e os comportamentos acerca do amor em ação na sociedade e o reforçam, por meio de linguagem, imagens, sons e símbolos. (Maria Chaves Jardim citando Luhmann)

Disso se compreende que os simbolismos do amor estão presentes nos meios de comunicação e entretenimento, em especial na literatura, e que essa linguagem romântica influencia diretamente na forma como percebemos esse amor. Não precisamos de muito para compreender que os códigos do amor também podem ser moldados (manipulados, cooptados) pelo modelo societário, afinal, é ele (o modelo) que cria esses códigos.


Aqui está o problema do “mito do amor romântico” que possui raízes patriarcais. Ele nos é apresentado no formato de interesse machista e misógino, que coloca a mulher em posição de submissão e sacrifício, cuja manifestação principal consta na sua assimilação pelo homem. A entrega integral e absoluta da mulher, que aniquila a sua própria individualidade em prol do relacionamento romântico, é não apenas incentiva, mas considerada como a única forma válida de demonstração de amor. 

O amor é uma conspiração engendrada pelos homens contra as mulheres para lhes encher a cabeça com sonhos tontos e impossíveis (Giddens)

O amor e o casamento não são historicamente conectados. Até o século XX, casamentos eram atos puramente negociais, como vemos frequentemente nos romances de época. Tinham a função de ampliar a família pela prole e reunir pessoas ricas para que elas ficassem mais ricas. Nesse momento, o amor romântico era um modelo subversivo porque focava no individualismo do eu (que ambicionava e conquistava o outro) em detrimento do coletivismo (opressor) da “função social” do casamento. Porém, em algum momento, esse amor romântico foi cooptado pela sociedade (principalmente pelo capitalismo, que o tornou produto) e seus símbolos foram moldados para encerrar a subversão e garantir a submissão. 

[…]o amor romântico seria o ajustamento inconsciente das mulheres a uma estrutura de dominação, que se expressaria em um discurso que coloca o amor romântico como norma para a felicidade. (Bourdieu)
É aqui que entra a relevância do romance feminino, esse escrito por mulheres e para mulheres. Ele tem função social: ressignificar os símbolos do amor romântico em uma proposta feminista. Recapturar o amor romântico em favor das mulheres e da igualdade entre os gêneros. Recodificar a linguagem para que ela não mais reproduza os modelos patriarcais e misóginos, mas que produza um discurso igualitário de gênero. 

Tudo bem. Já ouvi dizer por aí que livros não possuem papel pedagógico nem são manual de orientação. Concordo em partes. Livros são arte e, como arte, são subversão. Livros são arte e, como arte, passam mensagens. Se você considera que livro é produto, até mesmo produtos passam mensagens. Há sempre “algo por trás” de uma obra artística ou de um produto audiovisual ou literário, mesmo que ele seja focado no entretenimento. 


Precisei chegar até aqui para trazer duas eternas polêmicas dos romances, aquela que toda vez retorna ao Twitter e já chegou ao Threads e que também aparece no Instagram de vez em quando: os romances eróticos se transformaram em pornografia e os romances dark são um desserviço social porque reproduzem e romantizam violências sistemáticas contra mulheres. 


Primeiras coisas primeiro: não há nada errado em romances eróticos nem romances dark. O erotismo é parte da vida humana, ele nos conecta ao outro e nos potencializa no outro. A potencialidade do erótico é tanta que, historicamente, mulheres têm seus corpos controlados pela sexualidade (demonizada, criminalizada, tratada como pecado). Já os romances dark, eles são uma ficção mais agudizada em que colocamos personagens de moralidade duvidosa e até mesmo imorais em posições que são, comumente, as dos herois literários. Não há nada na essência do erótico e do dark que seja violento ou opressor para as mulheres.


Casal sensual (vocês o conhecem como Maximiliano De Leon). Foto por depositphotos
Casal sensual (vocês o conhecem como Maximiliano De Leon). Foto por depositphotos

Mas pode haver um problema quando esses subgêneros do romance são cooptados e capturados pelo sistema patriarcal e se tornam um espaço de reprodução do modelo machista que nos oprime. Isso acontece. 


Temos livros escritos por mulheres e para mulheres, romances “de mulherzinha”, classificados como eróticos, que são pura manifestação pornográfica. Na sociedade atual, pornografia não se resume ao vídeo naquele site “proibido”. A pornografia é a morte do erótico, é o excesso, o que transborda e aniquila o outro e nos sobrecarrega a ponto de não haver mais espaço para a imaginação e a fantasia. 

“Diante da enorme quantidade de imagens hipervisíveis, hoje já não é mais possível fechar os olhos.” (Han Byung-Chul, p. 73)

A pornografia é, historicamente, um modelo de opressão feminina. Por mais que o feminismo liberal (que foi integralmente cooptado pelo patriarcado capitalista e se transformou em produto2) proponha que a liberdade sexual da mulher significa o direito de fazer sexo como fazem os homens, a pornografia não tem nenhuma relação com essa libertação. Ela é fundada em signos e formatos focados no prazer masculino (eu) e na assimilação do feminino (outro)3


Mesmo que se considere que a pornografia seja exclusivamente audiovisual, basta perceber o quanto romances eróticos têm se rendido ao uso de imagens, sejam elas de que categoria forem, para ilustrar as cenas sexuais. 


Reflexão maior requer a questão do romance dark, porque, sob o argumento de que se tratam de livros com personagens imorais, diversos romances vêm surgindo com temáticas que cada vez mais reproduzem e romantizam violências contra a mulher. Temos o mito do amor romântico capturado em sua máxima, com relacionamentos extremamente violentos, em que mulheres são sequestradas, amarradas, presas, violentadas moral e psicologicamente, estupradas e, ainda assim, permanecem com seus agressores em um relacionamento porque “perdoam” ou porque o homem “muda pela força do amor”. 


Spoiler: homens não mudam pela força do amor. Eles mudam, claro, ou podem mudar, mas não é porque a mulher os “amou direito” ou porque se apaixonaram. As estatísticas de violência doméstica e contra a mulher, disponíveis em qualquer pesquisa de cinco minutos no Google, demonstram isso. Esse discurso reforça o modelo patriarcal de que a mulher deve ser resiliente, se submeter, ser paciente e aceitar as migalhas de um relacionamento terrível porque, no fim, receberá sua recompensa - o amor do homem. Retomamos as citações de Giddens e Bourdieu nessa newsletter para entender o quão problemático isso é. 


Signos, símbolos, modelos e linguagem (discurso) são poderosos elementos sociais que servem tanto à construção quanto à destruição de padrões. Romances femininos que reforcem o patriarcado e a misoginia são, definitivamente, reproduções do modelo cooptado do amor romântico, aquele que serve ao opressor e coloca a mulher como um sujeito a ser anulado e violentado no relacionamento amoroso. 


Decerto não estou aqui dizendo o que se pode ou não pode fazer, mas na intenção de provocar reflexões como fizeram comigo, naquele 2015, quando a Tatiana pisou em areia movediça e recebeu várias mãos para ajudar a se erguer.


Recomendações da semana:

  • Além dos textos recomendados no rodapé, recomendo hoje a leitura de Gênero, Patriarcado e Violência, de Helleieth Saffioti, que trata da naturalização da exploração da mulher na sociedade patriarcal.

  • Como tenho mergulhado na leitura do Han Byung-Chul (e não é para criticar o uso da internet), recomendo Agonia do Eros e A Expulsão do Outro, minha leitura atual. É ideal ler o primeiro antes do segundo, principalmente porque ambos têm uma pegada de filosofia da alteridade.


 

  1. Nesse sentido, recomendo a leitura de As mulheres e os discursos genderizados sobre o amor: a caminho do “amor confluente” ou o retorno ao mito do “amor romântico”?, de Ana Sofia Antunes das Neves, Para além da fórmula do amor: amor romântico como elemento central na construção do mercado do afeto via aplicativos, de Maria Chaves Jardim e toda a bibliografia de Luhmann, Bourdieu e Giddens que elas sugerem. Lembrando sempre que a academia é masculina e machista, por isso os grandes nomes que desenvolveram grandes estudos e teorias são, em sua maioria, de homens. Muitas mulheres brilhantes não tinham espaço ou tinham suas pesquisas apropriadas por homens.

  2. Recomendo a leitura de O feminismo, o capitalismo e a astúcia da história, de Nancy Fraser.

  3. Apesar de polêmica, a leitura de Pornography, de Andrea Dworkin, dá uma dimensão intrigante do tema sob a ótica do feminismo radical.

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