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Não nos calarão (mas tentarão)

Foto do escritor: Tatiana MaretoTatiana Mareto
Existe mais de uma maneira de queimar um livro. E o mundo está cheio de pessoas carregando fósforos acesos. - Ray Bradbury - Farenheit 451

Hoje, escrever romance erótico se tornou um movimento revolucionário. O direito de mulheres escreverem erótica para mulheres está sendo perseguido como já era de esperar. “Conquistamos” direitos demais. Está na hora de colocarem um freio nisso. Passou dos limites. Como assim, mulheres ousam escrever, falar, consumir sexo? 


Calma, Tatiana, você está exagerando.


Não estou. Gostaria de estar, claro, já que de vez em quando eu tenho um surto dramático e transformo pequenos eventos em problemas estratosféricos, só que, dessa vez, a coisa é como ela é. Estamos diante do crescimento de movimentos de direita1 que vêm acompanhados de um neopuritanismo que atinge até quem se diz “de esquerda” e progressista. Esse neopuritanismo avança sobre a literatura (e as artes em geral), e, mesmo sem esses rótulos ou sem declarada intenção, ataca qualquer espécie de literatura voltada para o feminino, o sexual e o revolucionário. 


Há diversas desculpas prontas para rebater quem se preocupa com o banimento e o silenciamento de romances eróticos femininos: 


  • literatura não é pornografia (já falei sobre isso aqui), 

  • romances eróticos são a morte da literatura, 

  • são mal escritos (?)

  • tem criança (??) lendo romance erótico porque eles não possuem classificação indicativa2

  • as capas são feias


E por aí vai. São, como eu disse, desculpas e não motivos sólidos (principalmente se vivemos em democracias que prezam pela liberdade de expressão). Não há, na verdade, nenhum motivo para se banir livros, a não ser que eles violem uma dúzia de direitos humanos. A história já nos mostrou o que acontece em sociedades onde livros são perseguidos e proibidos. 


Não pensem que o martelo da censura vai esmagar apenas aquela historinha hot que você não gosta porque “tem sexo demais”. A “terra da liberdade” que muitos brasileiros enaltecem como o lugar mais livre do mundo vem sendo atingida por um tsunami de pedidos de banimento de livros (censura raiz) desde 2022 que pouco se viu igual.3 

Segundo a ALA - American Library Association e a PEN America, em 2022 foram 1.269 pedidos, o maior número registrado em 20 anos. Entre os mais de 2.000 livros catalogados como "restritos", "questionados" ou "proibidos" para estudantes, em até 37 Estados norte-americanos, destacam-se obras como "A vida de Rosa Parks", "Maus", "O Caçador de Pipas", "O Hobbit", "The Handmaid's Tale" e "O Diário de Anne Frank".4
Cartaz em um protesto contra o banimento de livros em Atlanta, Geórgia (fevereiro 2024) John Ramspott
Cartaz em um protesto contra o banimento de livros em Atlanta, Geórgia (fevereiro 2024) John Ramspott

Os direitos fundamentais5 de minorias nunca estão consolidados, nem garantidos. Nós, mulheres, nos tornamos sujeito de direitos no Brasil há pouquíssimo tempo. Até 1962 a mulher casada perdia capacidade civil e se submetia ao marido por lei.6 Até 1977 não havia divórcio (e sabemos bem que mais se prejudicava com isso) e até 1988 não havia igualdade entre gêneros. Até 2006 a violência contra a mulher não era tratada como uma questão social relevante. 


Preocupa-me que pessoas jovens, nascidas pós Constituição de 1988, pós Lei Maria da Penha, pós reconhecimento da família homoafetiva, acreditem que esses direitos, conquistados (?) com suor e sangue, acreditem que não precisam fazer mais nada e desqualifiquem a luta daquelas que vieram antes.


Romances femininos, sejam eles eróticos ou não, foram proibidos por séculos, depois relegados às bancas de jornais porque não eram considerados literatura. Na década de 70, em pleno regime ditatorial brasileiro, Cassandra Rios teve nada mais do que 36 de seus livros (eróticos) censurados. Ela também foi chamada de comunista (a ofensa padrão para quem se posiciona diferente da direita) e obscena. 


A publicação do livro de Natália Correia, em 1965, desafiou a censura do regime ditatorial português e publicou uma antologia erótica repleta de poesias com conteúdo sexual: Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica. Claro que a obra já nasceu condenada. Foi recolhida pela polícia e a autora, o editor e alguns poetas, presos (o que não impediu sua leitura clandestina em edições pirateadas). 


A história da censura da literatura feminina está ligada à história da censura geral, da ditadura e da ausência de democracia. O sexo só viola dos bons costumes quando praticado pela mulher e para a mulher. Homens prostituem mulheres para seu entretenimento e violam “leis” morais sem qualquer punição severa, mas nós não podemos nem mesmo conversar sobre sexo porque, bem, é pornografia. Certo?

(contem altas doses de ironia)


Quem chegou agora no mercado literário pode não ter percebido, mas foi em 2012 que os romances eróticos conquistaram espaço. E eles explodiram, porque mulheres leem e gostam de sexo. Quem poderia imaginar que mulheres gostam de romance, de relacionamentos interpessoais, de prazer? 


Ao que parece, não podemos gostar ou, se gostamos, não podemos falar sobre isso. 

Há livros de todos os estilos, gêneros e formatos, para todos os gostos e desgostos. Há livros de todos os preços. Há livros acessíveis em livrarias virtuais como nunca houve. Escolha o seu e seja feliz lendo o que quer. Escreva o seu e seja feliz trabalhando com o que acredita. Deixem os romances eróticos em paz


Ainda não chegamos ao banimento institucional de livros eróticos no Brasil, mas o discurso recorrente que tenta reduzir esses livros à pornografia e desqualificá-los como literatura sabe bem o que está fazendo. Não pensem que não vai acontecer. A resistência passa por nós e o respeito, também. 

Um dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu.Como não sou judeu, não me incomodei.No dia seguinte, vieram e levarammeu outro vizinho que era comunista.Como não sou comunista, não me incomodei.No terceiro dia vierame levaram meu vizinho católico.Como não sou católico, não me incomodei.No quarto dia, vieram e me levaram;já não havia mais ninguém para reclamar... - Martin Niemöller

Recomendações da semana

  • O Conto da Aia, que seria banido em 195 de 195 países (e só por isso amamos Margareth Atwood)

  • Dois livros necessários da Andrea Dworkin: Woman Hating e Pornography: men possessing women, porque nem tudo são flores quando falamos de sexo e mulheres na mesma frase. Não é porque eu defendo a literatura erótica livre que compactuo com certos absurdos. 

  • O Calibã e a Bruxa de Silvia Federici, que recomendo em versão impressa porque é linda demais (além do conteúdo bombástico)


 
  1. Deixando aqui algumas fontes para leitura caso queiram compreender mais sobre esse fenômeno: a) Por que a extrema-direita cresce no mundo, b) A democracia na encruzilhada, c) O crescimento da extrema-direita na Europa, d) ONU alerta sobre o crescimento da extrema-direita na Europa.

  2. A preocupação aqui é com algo que não é responsabilidade das autoras. Não existe classificação indicativa de livros simplesmente porque eles são seguros. Se você abrir um livro que não é adequado por qualquer motivo, não será bombardeado com imagens que provocarão pesadelos por muito tempo. Feche a página. A responsabilidade de não permitir que adolescentes leiam livros inadequados para sua formação é dos pais e mães, que devem estar de olho no que fazem suas filhas. Parece que o risco de um romance erótico nas mãos de uma jovem é bem menor do que ser cooptada por predadores sexuais na internet.

  3. Recomendo visitarem o site da PEN America para acompanhar o status atual do banimento de livros nos Estados Unidos, mas ele avança a passos largos apesar da resistência. Imagino que as próximas eleições (que estão realmente próximas) sejam um marco divisor para determinar quem “vence” essa disputa. Se é que há vencedores quando estamos falando do absurdo que é banir romantasia para jovens, por exemplo.

  4. Retirado do site Migalhas em https://www.migalhas.com.br/quentes/401447/abc-da-censura-entenda-o-movimento-que-bane-livros-nos-eua

  5. Sei que a tendência é se falar “maioria global” ao me referir a grupos historicamente minoritários (porque eles são maioria numérica no mundo), mas me refiro aqui a minorias políticas, grupos não representados e silenciados historicamente. Sem voz, sem poder, sem direitos.

  6. Isso mudou na lei em 1962 com o Estatuto da Mulher Casada.

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Tatiana Mareto @ 2020 - Todos os direitos reservados.

 

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