Aviso importante. A newsletter de hoje não está para menos de 18 anos ou para pessoas que sejam sensíveis a discussões sobre sexualidade, incluindo termos de baixo calão ou até mesmo depreciativos. Se você não se sente confortável com debates desse tipo, recomendo pular o texto de hoje e esperar o próximo =)
As redes sociais às vezes explodem com um determinado assunto, exatamente como aquele famoso gif que todo mundo conhece:
Essa semana eu estive ou muito ocupada ou muito alheia, ou pode ser também que nenhum assunto causou esse efeito de comoção no mundão literário. Só sei que o não achei nenhum tema realmente grande, então revisitei meus guardados de tretas e encontrei um assunto que me provoca todas as vezes que aparece.
Primeiro, quero falar sobre sexo.
Os romances estão no topo das categorias da Amazon e chegam ao topo de vários rankings de best-sellers mundo afora. Séries e filmes de romance não param de ser lançadas e as músicas, então… romance sempre vende, não é mesmo?
Mas.
Vivemos uma época em que a sexualidade vem sendo negligenciada pela população mais jovem. Não faltam estudos sobre o quanto a geração Z faz menos sexo (e se relaciona menos) do que as outras gerações. Ou seja, não é só sobre sexo, mas sobre o relacionamento interpessoal que pode levar ao sexo — está tudo em falta na geração Z. Há quem atribua esse fenômeno à elevação dos padrões em relação aos parceiros, ou a novas formas de relacionamentos1.
Também há estudos que considerem uma constante exposição à pornografia (que tornam a pessoa insensível ao sexo) e o excesso de vida virtual (que faz com que a vida real seja frustrante e muito complicada) como fatores que contribuem para que a geração que tenha mais direitos e liberdades esteja se afastando do sexo tradicional2.
Sejam quais forem os fatores, também se considera que a diminuição da frequência sexual pode provocar efeitos colaterais complicados, que vão muito além do desinteresse individual pelo relacionamento sexual3.
Mas é claro que estamos falando de literatura, então chegamos onde eu queria: essa onda de apagão sexual pode ser sentida no meio artístico. Desde quando jovens pedem que a Netflix coloque um botão para “pular” cenas eróticas ou sensuais em filmes4 até quando percebemos uma crescente demanda por livros sem conteúdo sexual.
Não se enganem, essa demanda está entre nós. Depois da recente remodelação de categorias que a Sra. Amazon fez (que ficou muito ruim, diga-se de passagem), chamou a minha atenção uma categoria chamada “romance limpo e saudável”. Até então eu nunca havia notado a sua existência e, sinceramente, não fiz a menor ideia do que se tratava.
Como muito provavelmente estava diante de uma tradução bem xumbrega das categorias gringas, lembrei que lá fora chamam os romances sem cenas de sexo explícito de clean romance. Aí tudo fez sentido.

Nem tanto.
Clean é a palavra em inglês para limpo. Também usado como sem excessos (para decoração e vestuário) ou puro (?). Pode ser, ainda, honesto, suave, liso, inofensivo ou inocente, em se dependendo do contexto (e das palavras que o clean acompanha). Mas, bem, a gente sabe que o clean romance deve ser traduzido como “romance limpo” porque a Sra. Amazon, mãe das autoras independentes desse país (e talvez do mundo todo), tem lá aquela categoria “limpo e saudável”.
O saudável me pega sempre, viu?
Pesquisando no Sr. Google, entendi exatamente a que tipo de livros o clean romance se refere: histórias de amor entre um casal em que as cenas de sexo não sejam descritas. Quando a gente pergunta para o guru das pesquisas ele responde:

Fácil de entender, difícil compreender.
Quando eu digo que romances castos (olha que palavra boa, por que não usamos essa?) são limpos e saudáveis (alô Amazon, é para você mesmo, entendeu?), estamos dizendo que os romances não castos, que contém sexo explícito, são… sujos e tóxicos.
Sim. O oposto de limpo é sujo. O oposto de saudável é não saudável, tóxico. Se eu digo que um romance é limpo e o outro é sujo, e se o sujo é o que tem sexo, a mensagem fica bem fácil de compreender.
Claro que romances não precisam conter cenas explícitas. O que define um relacionamento não é o sexo5, assim como o que define um livro, também não o é. Livros de romances existem nas suas mais variadas formas e não é a presença de cenas eróticas que fazem deles bons livros ou não. Porém, o discurso importa.
Sexo é tabu para mulheres há séculos. Mulheres são proibidas de aproveitarem o sexo, chamadas de putas ou vagabundas (ou os dois) quando se relacionam sexualmente com vários parceiros, fugindo do papel tradicional da mulher casta e pura que se preserva para um relacionamento monogâmico (o casamento). Mulheres não podem sentir prazer nem tocar e conhecer o próprio corpo. A repressão sexual feminina teve pontos mais altos e mais baixos durante a história humana, mas nunca desapareceu.
Claro que, hoje, mulheres possuem muito mais liberdade sexual do que há vinte anos. E há vinte anos se tinha muito mais liberdade do que há quarenta. Essa liberdade, no entanto, custa muito caro. Além do suor e sangue das mulheres que lutaram muito para conquistar (?) direitos humanos para todas nós, ainda há a certeza de que esses direitos não são permanentes. Temos que lutar por eles todos os dias.
Quando o discurso aponta o dedo para o romance erótico, colocando-o em contraponto com o “limpo e saudável”, o não dito já está dito o suficiente para que todos entendam.
… a realidade é que já há muita vergonha e dedos apontados para o sexo. Isso inclui o ato de aproveitar o sexo, especialmente se você é uma mulher. Mesmo nos tmepos “modernos”, há pessoas que acreditam que, para mulheres, o sexo serve apenas à reprodução, sem necessidade de um orgasmo. Nós, no mundo dos romances, não precisamos acrescentar a esse tipo de vergonha permanente chamando livros que não contém isso [sexo] de “limpos”.6
Indo mais a fundo, encontrei bastante gente falando sobre romances limpos (e saudáveis, não se esqueçam!) e por que eles estão tão em alta. Um texto do site Suckless at Content, que reúne artistas do meio no exterior, me fez refletir além da questão contém ou não contém cenas eróticas.
Os “romances limpos” arrebataram o mundo! Essas histórias que aquecem o coração são um escape refrescante das complexidades da vida real. Sem necessidade de drama excessivo ou cenas explícitas, as leitoras podem mergulhar em romance puro e não diluído.7
Mais uma vez, estamos diante do que o romance limpo oferece: lições de vida, crescimento pessoal, autocuidado, escapismo emocional, esperança e a importância do amor e da conexão (tudo isso tirado desse texto aqui). Isso quer dizer que o outro romance lá, o sujo, não oferece nada disso, não é mesmo?
Mais uma vez, discurso importa. Novos tempos, novas mentes não podem cometer os mesmos equívocos do passado acreditando que “é só uma expressão” e que o “problema está em quem se ofende”. Até porque não tomo nada disso como pessoal. Não é sobre mim, nem sobre meus livros, nem sobre nenhuma autora em particular. É sobre um fenômeno coletivo (os romances limpinhos em alta!), que se aproveita de outro (o desinteresse sexual de uma geração inteira) para perpetuar um conceito negativo e degradante sobre a sexualidade.
Um fenômeno que não está nem um pouco restrito à literatura, já que hoje mesmo me deparei com esse post no Threads:

Sim, o oposto de limpo é sujo. Não me parece nada legal elevar um fenômeno depreciando outro, então a Sra. Amazon bem que poderia repensar a sua forma de tratar os romances sem cenas explícitas. Talvez de uma que não chame a grande massa leitora dos seus ebooks de suja.
A CNN traduziu uma de suas matérias sobre o tema e publicou aqui. Não ficou nada bom, CNN, mas, ao menos, dá para entender do que se trata.
Uma boa leitura é o texto publicado no Correio Braziliense sobre o apagão sexual.
Não me alongarei nesse debate, mas convidarei à leitura de alguns textos: Falta de sexo pode levar a sintomas de sofrimento físico e psicológico em longo prazo. O que muda no seu corpo quando você deixa de fazer sexo?
Vocês podem ler sobre isso nessa matéria do R7 e nessa coluna do cinemação (bem crítica, por sinal).
Antes que eu seja cancelada pelo que ficou implícito ou contraditório: entendo perfeitamente as várias manifestações da sexualidade e não tenho que emitir opinião alguma sobre como cada pessoa se orienta, tanto em questões de gênero, quanto de sexualidade. A presença ou ausência de sexo na vida de uma pessoa não a define, assim como relacionamentos românticos podem existir sem sexo. Meu texto apenas apresenta que há fatores externos (não ligados às orientações de gênero e sexuais de um indivíduo) que vêm interferindo na decisão de fazer ou não sexo. São pesquisas científicas e estudos que discutem um fenômeno coletivo e não individual.
Citação original: However, the reality is that there is already so much shaming and finger wagging behind sex already. This includes the act of and enjoyment of it, especially if you’re a woman. Even in this “modern” day and age, there are some people out there who believe that for women, sex is just for reproductive purposes, no orgasm required. We in the romance world don’t need to add to this type of perpetual shaming by denoting books that don’t have it as “clean.” Extraído do ótimo texto Getting rid of “clean” romances, do Book Riot.
Citação original: Clean romance novels have taken the world by storm! These heart-warming tales are a refreshing change from the complexities of everyday life. With no need for excess drama or explicit scenes, readers are able to indulge in pure, undiluted romance. Retirado do texto Understand the market for clean romance novels.
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