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O outro morreu

Foto do escritor: Tatiana MaretoTatiana Mareto

Esses dias retomei e finalizei a leitura de Agonia do Eros, de Han Byung-chul. Comprei três livros dele quando estive na Bienal do Livro do Rio de Janeiro no ano passado e comecei por esse porque, por algum motivo, senti que dialogava com o que eu faço. Acertei.


Faz tempo que debato com “azamigas” sobre questões do mercado literário para tentar compreender aquilo que preciso para fazer meu livro atingir mais pessoas. Já se foi o tempo em que a escritora era uma criatura isolada, que se escondia para escrever sua obra-prima, que podia levar mais de um ano para ficar pronta, e não precisava entender uma linha do restante dos processos. Hoje somos multitarefas porque o mercado (essa entidade esquisita da qual falamos mas nem sempre conseguimos mensurar) nos faz assim. Ai da autora que não sabe tudo sobre tudo, não há lugar na sombra para ela. 

Eros, por Peter Paul Rubens (1614)
Eros, por Peter Paul Rubens (1614)

Dentre essas questões, discutimos o que (e por quê?) as leitoras leem, o que faz um livro se tornar um sucesso, como mais pessoas conseguirão ter acesso ao meu livro, o que é sucesso e, sucesso importa? Muitas das vezes usamos as redes sociais (em especial o Twitter e o Threads) para “ouvir” o que leitoras e outras autoras dizem e quase nunca concluímos nada. Está tudo muito disperso, muito caótico e barulhento. 

“Diante da enorme quantidade de imagens hipervisíveis, hoje já não é mais possível fechar os olhos.” (Agonia do Eros, p. 73)

O mundo hoje é barulhento. Não conseguimos mais fechar os olhos nem os ouvidos porque somos bombardeadas com imagens, sons e ruídos que nem mesmo queremos ouvir ou conhecer. Tudo está disponível muito facilmente. Muita informação livre e pouca gente sabendo o que fazer com ela. 


No meio desse caos, conseguimos perceber que o mundo também está mais individualista e esse fenômeno remonta ao humanismo europeu, quando nos tornamos (?) o centro do universo. Mesmo quando nos deparamos com movimentos tipicamente coletivos, como os sociais, as pessoas envolvidas estão mais focadas nelas mesmas do que no outro, e isso, por mais incrível que pareça, também se reflete na arte e na forma como a produzimos e consumimos. 


Eu escrevo e leio romances. Romances são sobre pessoas, sobre relacionamentos interpessoais. Sobre o outro. Esse outro, que Lévinas escrevia com letra maiúscula para dar a ele o contexto de nome próprio, não é como nós e não deve ser. Quando ansiamos que o outro seja como nós, matamos a sua essência porque o assimilamos. E estamos fazendo exatamente isso: matando o outro porque queremos que ele seja exatamente igual a nós. 

“Ele não consegue perceber o outro em sua alteridade e reconhecer essa alteridade. Ele só encontra significado ali onde consegue reconhecer de algum modo a si mesmo. Vagueia aleatoriamente nas sombras de si mesmo até que se afoga em si mesmo.” (Agonia do Eros, p. 10)

O que é um paradoxo intrigante, já que vemos e ouvimos gritos não isolados de muites que querem ser respeitades e aceites em sua individualidade.

Jovem se defendendo de Eros, por William-Adolphe Bouguereau
Jovem se defendendo de Eros, por William-Adolphe Bouguereau

Mas, onde que isso se conecta com os romances, mesmo? Também na essência. Se o romance é uma história sobre o outro (porque não existe amor romântico sem o outro), a sua morte é a morte do romance. O ensimesmamento do mundo, em que cada dia vemos mais pessoas focadas apenas no “eu”, conduz ao afastamento ou à assimilação do outro e, como consequência, as histórias que eu escrevo (que nós escrevemos) perdem significado. 

“A crise atual da arte e também da literatura pode ser reduzida à crise da fantasia, ao desaparecimento do outro, ou seja, à agonia do eros.” (Agonia do Eros, p. 74)

Não que isso seja algo com que eu e minhas amigas consigamos trabalhar. É um traço da sociedade atual, uma característica que faz até mesmo parte de um processo, de um sistema, de um projeto que envolve poder e lucro. Mas nos faz — me faz — pensar bastante em como lidar com o apagamento (até mesmo a morte) do outro nos meus trabalhos presentes e futuros, já que eu dependo dele para seguir adiante.

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Tatiana Mareto @ 2020 - Todos os direitos reservados.

 

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