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O placebo da perfeição

Foto do escritor: Tatiana MaretoTatiana Mareto

Acabou mais uma Bienal do Livro de São Paulo e o saldo que ficou para mim, que observei tudo de longe e com olhos críticos, foi de que a literatura, que é arte (por isso revolucionária), também é produto (por isso sujeita aos interesses puramente mercadológicos). Infelizmente, o produto vem sufocando a arte porque, bem, escritoras precisam ganhar dinheiro, não é mesmo?

Tio Patinhas mergulhando em sua “piscina” de dinheiro. Só quem é geração X entende essa referência rsrs. Imagem do Google.
Tio Patinhas mergulhando em sua “piscina” de dinheiro. Só quem é geração X entende essa referência rsrs. Imagem do Google.

Bem. 


Sou escritora de romances e, há algum tempo, venho notando (junto de outras autoras do mercado) um paradoxo intrigante: romances (eróticos) são sempre os ebooks mais vendidos da Amazon, enquanto o jovem, que é o público leitor dominante1, parece não estar nem um pouco interessado em romance erótico2. O jovem parece não estar interessado em romance algum e isso levanta outras questões que eventualmente posso debater em outro texto (ou não). 


Dá para perceber um abismo entre os dados da maior plataforma de autopublicação do mundo (Amazon) e os do mercado literário como um todo porque, no primeiro, temos o fenômeno devastador do romance erótico, que domina radicalmente as listas de autopublicados mais vendidos sem levantar o interesse das editoras (ou será que são as autoras destes livros que preferem a autopublicação?).


O paradoxo fica ainda mais interessante quando confrontamos os enredos e personagens desses romances: temas muito pesados, com uma dose cavalar de drama e personagens masculinos violentos, até mesmo com as mocinhas34. Mas, se formos analisar as tendências mercadológicas (o que está em alta com as editoras), temos o exato oposto: livros mais suaves, ou que tratam os dramas em uma perspectiva terapêutica (ficção de cura?) e com mocinhos tão perfeitos que beiram ao absurdo. 

Também conhecido como healing fiction em inglês, [ficção de cura] é um gênero literário que se passa em ambientes acolhedores e nos permite mergulhar no desenvolvimento dos personagens e nas relações humanas. (Blog da Intrínseca)

Ou seja, mesmo nos romances que focam no casal (como deveria ser), os personagens têm várias questões individuais para cuidar, muitas vezes lidam com doenças mentais e o mocinho é (quase) sempre um cavalheiro encantado mítico cuja função principal na história é fazer a mocinha feliz. 


Pedi ajuda às universitárias (Stefany e Karina, essa é para vocês) e elas levantaram alguns nomes para citar hoje, aqui. Dentre os mocinhos literários que nos são apresentados como pessoas cheias de problemas porém perfeitas demais para serem reais (principalmente no contexto da história), temos: 


  • Levi, de A razão do amor (Ali Hazelwood)

  • Daniel, de Parte do seu mundo (Abby Jimenez)

  • Win, de Lugar Feliz (Emily Henry)

  • Wes, de Muito mais do que nos filmes (Lynn Painter)

  • Dax, de Um feitiço de amor (Kate Robb)

  • Miles, de Nem te conto (Emily Henry)

  • Noah, de Amor em Roma (Sarah Adams)


A lista é muito maior, então paremos por aqui. Até porque não é só na literatura que as histórias construídas com personagens perfeitos tem chamado atenção. A ascensão nacional dos doramas mostra que, no audiovisual, muitas mulheres (e essas não são tão jovens assim!5) mergulham nas histórias de amor (?) com mocinhos sem falhas que fazem de tudo pelas mocinhas (e, na maioria das vezes, não enfrentam nenhum conflito).

Considerando que vivemos uma pandemia de doenças mentais6 e um momento de extremo individualismo coletivo (outro paradoxo), não me surpreende que a demanda mercadológica direcione os romances para histórias sem conflitos intensos, com mocinhos que seriam outrora chamados de panacas, e com relacionamentos perfeitos em que a mulher não esteja sofrendo nenhum tipo de estresse violento (exceto pela realidade do mundo, porque esse é cruel. O amor não precisa ser). 


Estamos cansadas, não é mesmo? Cansadas de um mundo machista e misógino que nos empurra para trás sempre que damos um passo a frente. De homens que nos agridem e nos matam apenas porque existimos. De trabalhos que nos oprimem e nos impõem salários inferiores ou não nos respeitam enquanto profissionais. Estamos exaustas e isso direciona bastante o nosso gosto e nosso desejo na hora de escolher o que vamos ler ou assistir. 


Tudo bem, eu adoro thrillers psicológicos, suspense e tramas policiais. Quanto mais me deixar tensa, sentada na beirada do sofá com as mãos agarradas nas almofadas, melhor. Mas também gosto da tradicional comédia romântica, de livros e filmes que me vendam a ideia de um parceiro apaixonado que me trate bem e me respeite e a possibilidade de superar obstáculos sem precisar tomar três ou quatro medicações todo dia. É aqui, nesse momento, que os mocinhos perfeitos e os romances sem conflitos ganham terreno, porque eles atendem um desejo direto meu de algo diferente do que o mundo real oferece. 


Tenho lá minhas ressalvas em chamar esse tipo de história de ficção de cura, mais ainda quando falam que elas provocam grandes reflexões. Não provocam. São confortáveis, com personagens que podemos nos reconhecer neles vivendo a vida que provavelmente gostaríamos de viver. O objetivo, de verdade mesmo, é provocar o mínimo de reflexão e o máximo de identificação possível, o que conduz apenas (?) a uma experiência agradável de leitura. 


A tendência me parece ser essa, mesmo que a Amazon permaneça indicando o oposto. Arte por arte, ainda podemos escrever o que queremos e o que sai de dentro da gente. Arte por produto (e vendas) nos obrigam a prestar muita atenção nos fenômenos mercadológicos que são ditados pelo interesse das editoras e desejo das leitoras. 


Ps: leiam as notas de rodapé. Garanto que elas são importantes =)

Recomendações da semana



 
  1. Vocês podem ler sobre a participação do jovem na Bienal SP neste texto da Publishnews:

  2. Falei já sobre isso nesta newsletter e nesta aqui, que discute um pouco sobre os “clean romances” e a problemática dessa nomenclatura.

  3. Também falei sobre isso na newsletter mais badalada do Tativerso: Eros, pornografia e violência.

  4. O ranking da Amazon tem todo tipo de dark romance, monster romance (uma grande tendência, um tipo de romance erótico paranormal) e bebês abandonados por toda espécie de pai lixo que depois volta com o rabinho entre as pernas pedindo perdão. O caminho é longo e os abusos se proliferam entre os top 100 da plataforma, o que só me faz considerar que há muito mais vida no mercado literário fora da Amazon do que supõe a vã filosofia da autora independente. Ainda assim, esses livros vendem, e vendem muito, mesmo que não estejam em nenhum debate sobre tendências mercadológicas. Vocês entendem? Eu, não.

  5. Descubram mais aqui: https://agenciauva.net/2023/10/04/doramas-publico-atravessa-geracoes-e-conquista-telas-brasileiras/ ↩︎

  6. Dados nacionais indicam que houve aumento de diagnósticos e afastamentos do trabalho em razão de problemas relacionados à saúde mental. Fonte aqui. A OMS lançou, em 2023, um informativo alarmante sobre saúde mental: mais de 1 bilhão de pessoas, incluindo 14% de adolescentes, viviam com algum transtorno mental em 2019 (pré-pandemia da COVID-19). A incidência é maior entre jovens.

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